NUVEM
A mulher entra no seu apartamento com um
abismo pulsando nas entranhas, com uma fome de domingo e com um cansaço já seu.
Da janela o horizonte se anuncia com a vertical e funda ideia de não mais ser,
o anúncio de um fim não a alegra: satisfaz, respira fundo e pede qualquer coisa, pela consciência que o corpo
precisa, não pela vontade de comer, faz um tempo que não sente fome, olha pro
anel que exibe na mão direita e já não significa o sol daqueles dias passados.
O
quarto exibe o que foi sua escolha, alguns livros não lidos, outros sujos de
tanta releitura, na sala a cortina grita o vento que ela não sente, a mulher não
vive no apartamento, vive em um canto de
um vazio, amarelo e triste, embora as paredes, os móveis e seu tapete, de cor
tão sua, denunciem sua alma.
Na cozinha, um pano de prato amassado, umas
xícaras sujas, uma manteiga aberta e pão duro não conversam com sua vida de
fora, tão sociável e rica, tão restaurantes, papos acadêmicos no final da
tarde, discursos atravessados que ela reúne para um dia discordar , porque o
que enxerga é feio e não condiz com o discurso.
Encerra o domingo na janela, namorando uma
nuvem, matando a sede de silêncio, exibindo a solidão para o céu. Na semana,
atravessa faróis amarelos, corta fios, corta assuntos, costura bandeiras já sem símbolos: “operária em construção”.
Atende aos prazos, ao prazer, ao passo
rápido da cidade, ao gosto da rotina, à escolha das cores das meias.
É domingo e a vida se repete: a liga,
a língua e a linguagem vão aos poucos transformando-se em promessa, em dívida interna, aconchego
impossível de um afeto vão.
Suco, pão, queijo, faca e fruta e a
distância da cruz: uma flor vermelha na
cozinha anuncia um novo perfume, talvez uma nuvem que dure mais, que dure até a
tarde cair. Que refresque o peito morno, as cinzas, o pó, a pouca fé numa vida longa, porque o que é
vida? Diga quem souber.
Você fez bem a lição de casa sobre mim.
ResponderExcluirPerfeito. Bem observado.
Lindo e triste. Eu.
Não.
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