O medo de dizer da fundura das coisas.
Eu não saberia dizer, onde
foi mesmo que eu fiquei com esse olhar perdido, e eu nunca consigo fechar os
olhos diante desse fermento todo. Os pares todos vão cerrando os dias de chuva.
Sentei sozinha num café e um
homem largo e branco me apontou uma interrogação bonita, que me afligiu e me entristeceu, as pessoas me entristecem, me lançam palavras vãs...Me
interrogam, são bonitas, têm vida, têm histórias, coisas especialmente suas, eu
não tenho, eu vou morrendo sem saber dizer. Na faixa de pedestres conto os
pares, enquanto o farol abre, vejo
homens ,vejo mulheres, ontem vi uma
mulher feliz, riu sozinha e retocou o batom enquanto o farol não abria. Uma
outra mulher atravessava a faixa , segurando a mão da menininha ruiva, a menina
estava feliz, a mãe não.
Nas ruas os contratos de
felicidade vão se desfazendo, as caras de preocupação, de raiva, vão virando
sono nos bancos dos ônibus, vão virando atraso, promessas pra semana que vem,
aquele café no domingo, aquele caso das
antigas, aquela vontade de repente retomar o gosto de inverno. Eu sumo,
normalmente, sem palavra nenhuma, gosto nenhum. Eu perdi alguma coisa, eu
ganhei uma confusão, eu vejo as correntes, os contratos, as mentiras com
drinques caros, a coação que o tesão pressupõe, o medo de dizer da fundura das coisas , repouso o olhar no caos e
me lanço em desafio para enfrentar a rotina, a mancha no vidro, os pratos na
pia, as cartas já amarelas não mentem mais. O dinheiro, as passagens, as roupas,
os livros, o espaço, a tinta, o pão, o leite, todos esses são calculados,
creditados, pagos, ralos, e a doçura perdeu o rumo, vou ficando feia. Abandonei
o olhar num ponto de interrogação eterno.
Cada dia um susto, uma nova
cor, uma violência, um dia de distância, corpos que não se encontram, copos
sempre cheios, poesias nos perfumes de
tantas moças que passam, as palavras-laços enfeitando as noites de música,
de cintos, cinturas, zíper, café puro,
energético, eu, só, vejo. Sem par. Há uma raiva de certas coisas
não ditas, há vontade de força, de corpo, de sangue, de unha, abraço, cansaço, beijo e sangue, poesia e sexo, as
correntes são aço, aço, aço. Um dia serei vítima de um grande afeto sem aço,
sem corrente, os corpos se encontrarão, o que
no fundo é mentira. Pena.
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