domingo, 31 de maio de 2015

frigideira azul.

                       
             Nunca use coisa para começar um texto, é o que eu sempre digo para as turmas de ensino médio, é importante precisar o que se quer dizer, insisto. Pois bem, é sobre as  coisas bonitas que ela me faz que eu queria dizer, e nunca será preciso (adjetivo e verbo) porque tem jogadas inacreditáveis dos meus sentidos, que fugindo à regra do óbvio ,veem na frigideira não a utilidade prática de fritar alimentos, mas um azul que se destaca lindo e envolvente com a pele morena dela, uma pele morena que inspira todos os dengos do mundo. Há detalhes de alegria no jeito que ela sorri de achar uma poesia que se chama "glutamato monossódico" , há detalhes de alegria quando ela toma minha palavra antes que essa vire som e manda a perversidade de um homem "se fuder", do jeito bruto e revoltado que só a doçura dela sabe responder, porque não é uma doçura plácida de adultos resignados é a doçura de uma criança que quer o primeiro pedaço do bolo de chocolate com recheio de cereja, e tem toda fome que só quem deseja ardentemente sabe da urgência. 
         O sono dela me prende os braços e eu insisto num sono que eu não tenho, porque eu durmo pouco, e vê-la dormir é menos vê-la que sabê-la, eu fico no silêncio do quarto ,escutando o barulho de mar que seu dorso moreno invoca, um dorso que impera nos meus sentidos, por onde eu passeio poros e dentes. Os ombros macios que são equilíbrio de minhas mãos tontas do gozo que o corpo quis e teve.
          Fora do quarto, um turbilhão de afazeres, descartáveis e necessários, nos esperam : o preço pelo teto, pela luz, pelo transporte, a logística, a moradia , a casa grande que num é minha. Nessas horas em que o plano de cigana me salta aos olhos, nessas horas, ela entende meu silêncio, eu sei que ela sabe que eu queria prolongar a noite à luz do dia.
           Ter um mar numa manhã de frio parece mentira. Ir na contramão do óbvio é coisa que acarinhada pelos olhos dela vira dança. Porque eu quero descansar da festa do seu corpo achando esses detalhes que sua presença traz, suas pernas nuas me contam de cheiros de pimenta e flor,de força e sal. Mais nu que meu corpo são meus olhos quando coberta de luz ela diz sim com a língua e com o olhar.
          Meus sentidos vivem, vivem,vivem alegrias ora silenciosas , ora escandalosas que meu corpo ganha, às vezes dormindo, às vezes túmido de sim explodindo água.


            Tua,Flor
        
         

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Porque.

              É porque com uns dias a mais eu vou ter tempo de comprar umas meias novas para vestir embaixo de meus vestidos coloridos, vou também finalmente achar aquele trecho de Memorial do Convento pra ler para você, vou procurar os cartões de memória de minha câmera e fotografar você vestida como uma personagem do Tarantino, do Almódovar, vou ficar atoamente perdida nessas suas sardas engraçadas, tenho uns silêncios longos carecendo desse seu jeito de abraçar que parece me apartar das coisas ruins.
             Eu prefiro silêncio à repetição dos números para comer, para vestir, para morar, para medir o sangue, a água. A agulha sempre pronta a apontar erro na contagem da dor.
              É porque com uns dias de folga , podemos ir àqueles sebos da praça João Mendes e encontrar gramáticas da década de 20, prefácios com dedicatórias usando mesóclises , e até marcadores de textos antigos contando histórias de casais apaixonados jurando amor e melindres dentro dos livros agora amarelos de tanto tempo passando do lado de fora da rua.
                É porque com mais tempo livre para estarmos de olhos irrigados da doçura que esses encontros dão, talvez dê tempo de finalmente assistirmos ao filme de Fellini,
              Na hipérbole das cores translúcidas das borboletas pouco vistas, no copo de vidro transparente e vagabundo com o gole de café preto que eu te levo de manhã para te acordar com minhas línguas e meus olhos tomados pelos seus olhos miúdos ainda sonolentos, na intenção dos gestos querendo encontro, na dilatação macia de teus músculos dizendo sim, na doçura das tuas mãos me invadindo a nuca, esses encontros  sou eu dada à teu desejo intenso e contínuo.
           Se eu pudesse fundava um feriado hoje ainda para fazer o sol nascer a noite toda, pudesse, rasgava o livro de ponto, jogava fora  os boletos, os números, cessaria a  sintaxe frágil dos diálogos mal ditos e falava das paixões que alimentam as revoluções, pudesse, eu faria tudo para roubar você pra mim.